Raimundo Cela | 1997

Apresentação

A Multiarte completa, este ano, uma década do início de suas atividades. Em 1987 inauguramos com uma exposição em homenagem ao artista cearense Antônio Bandeira (1922-1967) em comemoração dos vinte anos de sua morte, ocorrida prematuramente em Paris.

Naquela oportunidade, nos propusemos apresentar sempre mostras ligadas à atualidade, trazendo para Fortaleza as melhores exposições, invariavelmente acompanhadas de um catálogo editado com todas as obras reproduzidas. Ao longo desses dez anos, publicamos 18 desses catálogos, com mais de 500 imagens de obras de arte, constituindo uma coleção de grande valor bibliográfico, os quais têm sido constantemente citados em publicações recentes.

Realizamos, ainda, em 1988, em cooperação com a Universidade de Fortaleza da Fundação Edson Queiroz, o Ciclo de Estudos e Debates Culturais, do qual participaram, além de personalidades de diversas áreas das artes visuais; o antropólogo Roberto da Matta, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna o pintor e restaurador Cláudio Valério Teixeira, o fotógrafo Pedro Vásquez e o historiador e crítico de arte Elmer Correa Barbosa.

No catálogo da exposição inaugural da Multiarte, assumimos o compromisso de “corresponder às expectativas do público de Fortaleza e assinalar um tipo de atuação sempre voltado para as iniciativas de qualidade, que procuraremos aperfeiçoar continuamente para o futuro”. Cremos ter atingido estes objetivos.

Dando início as comemorações do décimo aniversário, não poderíamos deixar de homenagear o notável artista cearense Raimundo Brandão Cela, apresentando uma coleção inédita de pinturas, desenhos e gravuras, cujo núcleo principal procede da família do Dr. Péricles Silveira, grande amigo e incentivador do artista nas décadas de 1940 e 1950.

A descoberta no Rio de Janeiro, da coleção que inclui obras como “Fitando o mar”, da qual até então, somente se conhecia a água-forte, e o desenho original para a gravura “Retirantes”, além de extraordinárias pinturas e desenhos realizados entre os anos de 1917 (estudo para o prêmio de viagem do Salão Nacional de Belas Artes – “0 Último Diálogo de Sócrates”) e 1947 (“Cais com embarcações”, “Mercado Velho do Rio de Janeiro”) permite, finalmente, que sejam resgatadas e venham a enriquecer o patrimônio artístico do Estado do Ceará.

INTRODUÇÃO

Excerto do depoimento do crítico e historiador de arte Quirino Campofiorito (1902-1993) dado em sua residência, em Niterói ao crítico e historiador de arte Carlos Roberto Maciel Levy, ao restaurador e artista plástico Cláudio Valério Teixeira e ao editor e administrador cultural Max Perlingeiro, em 19 de setembro de 1990, ano do centenário de nascimento do pintor cearense Raimundo Cela:

“Eu já era professor da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, desde 1938, e, pouco depois, em 1940, Raimundo Cela assume a cadeira de gravura. Lá, não se demorava muito nas conversas,  dava sua aula e quase sempre permanecia em sua sala. A maioria de nós freqüentava outros lugares, onde nos encontrávamos para trocar idéias, mas ele não era muito disso, preferia mesmo ficar em sua sala de aula e dali não saía. Quando não havia alunos, ficava. Iendo e mais nada.

Foi uma surpresa, porque eu realmente não sabia que ele era um grande gravador, suas gravuras foram mostradas aos professores, para conseguir o voto de aprovação da sua indicação (como era uma cadeira nova, uma disciplina livre, não era necessário concurso). Conheci então aquele material imenso, que ele mesmo não tinha mostrado e pouca gente conhecia, uma gravura muita boa de um bom desenhista. Cela teve, na Europa, um bom professor de gravura [Frank Brangwyn (1867-1943) pintor, gravador e litógrafo inglês] muito original. E há uma clara afinidade entre a gravura de Cela e a desse professor, muito nutrida de claro-escuro, de sombras projetadas, voltada para aspectos da vida popular européia. Além da influência formal, esse contato deve também ter estimulado Cela e, com o tempo, essa vontade de representar o popular brasileiro, e, como popular brasileiro, o popular nordestino talvez seja o mais característico de todos.

Como ele mesmo dizia :”popular, aqui no Sul, vocês estão com muita influência da Europa no Nordeste nós não temos muito essa influência somos mais autênticos, como coisa realmente da terra”. Esse era o seu ideal, e como os de minha geração já estávamos numa época em que a pintura começava a querer se desvencilhar dos temas e ser só pintura, um pintor que mantinha tamanha paixão pela temática parecia-nos um pouco restritivo, subjugado ao assunto. E pensávamos que Raimundo Cela era um daqueles pintores que, no fundo, estimava mais o tema do que a pintura propriamente. Hoje, bem se vê que não era sua pintura era condicionada ao tema para bem traduzí-Io, mas não era uma pintura que obedecesse ao tema, tinha valores próprios. O artista possuía uma paleta própria, uma maneira de pincelar só dele e muito relacionada com o aspecto rude dos elementos que ele pintava, da areia da jangada, das cordas, dos homens e daquele mar bravio, imensamente agressivo. Ele aprecia muito representar a jangada em um dos seus instantes mais dramáticos, a jangada saindo ou chegando, quer dizer, em cima da onda. É uma coisa bárbara, porque a jangada atravessa as ondas e se alaga e os jangadeiros vão retomar a jangada muitas vezes, depois da arrebentação. E realmente um momento muito dramático, esse de tomar a jangada, de levar a jangada ao mar e, ao mesmo tempo, de trazer a jangada para a terra, não em um dia em que o mar está mansinho, mas no dia em que o mar está muito forte, enfurecido. Nos mares do Nordeste, muitas vezes as praias recebem diretamente as ondas do Atlântico, e a jangada vai se aproximando, se aproximando, até que é pega pelas ondas e homens e jangada se embaralham num único turbilhão. Raimundo Cela fez excelentes pinturas em torno desse momento dramático. Realmente, eu acho, hoje mais ainda, dada àquela experiência que o tempo nos oferece, que Cela foi um dos nossos grandes pintores, não só por ter se ligado a temas muito reais da nossa vida nordestina e brasileira, mas por ter sido verdadeiramente um artista e um pintor.

Isso também se aplica às suas aquarelas, pois foi um grande aquarelista embora pouco se conheça essa parte de sua obra. No Brasil, infelizmente, os artistas têm poucas oportunidades e, às vezes, apenas podem, quando são pintores, mostrar que são bons pintores, mas são forçados a esconder sua capacidade como bons desenhistas, tal qual Cela ocultou o bom gravador que era porque naquele tempo a gravura era muito esquecida. E ele, na Escola Nacional de Belas Artes, essa escola sempre tão importante na vida artística brasileira, teve um papel muito significativo nesse nascimento da gravura e seu ensino.

Raimundo Cela foi um pintor da vida humana. A cada homem corresponde aquela paisagem, e ele soube ligar muito bem o homem a essa paisagem, colorindo a paisagem e a figura em um mesmo ambiente, muito seco e autêntico.”

Espaço expositivo

Catálogo virtual

Exposição realizada na Multiarte.