Exposição Cícero Dias

Apresentação

Em 20 de novembro de 1995, a Multiarte abrigou a primeira e única exposição de Cícero Dias realizada em Fortaleza. Segundo o artista me confidenciou, esta mostra seria um marco na sua vida, pois, além de Recife, Fortaleza seria outro local pioneiro no Nordeste a abrigar uma exibição mais abrangente de sua trajetória. Era um apaixonado por suas raízes nordestinas. Aquarelas dos anos 1920 e 1930 e pinturas das décadas de 1940 até 1980 compunham o grupo. Na noite de abertura, fui surpreendido com um simpático bilhete pessoal em papel de ateliê, concluindo “com votos de sucesso de Raymonde e Cícero”.

 Decorridos 22 anos e por ocasião das comemorações dos 110 anos de nascimento do artista, a Multiarte apresenta uma nova exposição no mesmo formato da mostra que tanto encantou o artista. Desta vez em curadoria compartilhada com a pesquisadora e crítica de arte Angela Grando, que convoca, por meio de seu texto, uma visão multifocal e anacrônica para tratar a obra do pernambucano internacional Cícero Dias. Refletem-se aí algumas das questões que foram desenvolvidas em sua tese de doutorado, Cícero Dias: figuration imaginative et abstraction construite [1928-1958], defendida em 2002, na Université de Paris I – Sorbonne. A análise dessa autora, ao revisar a trajetória da obra e do artista, desvela as origens constitutivas do modo Dias de criar. Esse estilo não deixa de estar associado à “radicalidade da imaginação, à fabulação visual e à visão construtiva” que emergem da associação de dois espaços – interno e externo – do artista e do mundo. Não por acaso, na escrita dessa redefinição e pelo conjunto de referências teóricas e críticas em que se desdobra o ensaio, é reativado o legado permanente de Cícero Dias para a construção de um imaginário brasileiro.

 As obras que compõem esta exposição, a maioria inéditas, são dez aquarelas dos anos 1920 e 1930, um desenho da década de 1930, dezenove pinturas dos anos 1930 a 1980 e dez litografias que constituem a Suíte Pernambucana, parte de um conjunto de 25 gravuras editadas em 1983, a partir de suas aquarelas de 1920. A impressão das litografias, feitas ao longo de um ano, ficou a cargo do Atelier Pierre Badey, em Paris, e todas as etapas de produção foram cuidadosamente supervisionadas pelo artista. Após a conclusão da impressão, as matrizes foram destruídas.

 Das obras, destaco o olhar poético e narrativo da pintura que ilustra a capa deste catálogo. Em uma sequência de imagens, exibe um jovem pintor deixando a cena artística do Rio de Janeiro, representada pelos arcos da Lapa, próximo à rua Aprazível, em Santa Teresa, cenário onde o artista produziu seus trabalhos emblemáticos, como Eu vi o mundo… ele começava no Recife. O painel de grandes dimensões causou polêmica pela sua ousadia. Assim, em um comentário atormentado, Mario de Andrade (1893-1945), em carta para Tarsila do Amaral (1886-1973), descreveu a coragem de Cícero Dias nas cenas do “quadro que faz tremer os muros”. Em seguida, contou sobre uma das suas inúmeras musas na bicicleta, elemento recorrente na sua pintura, e um navio com a bandeira do Brasil partindo com o artista em traje social, sentado à mesa com uma mulher nua, rumo ao desconhecido.

 Cícero Dias viveu intensamente a cena artística no Rio de Janeiro. Da sua primeira exposição em 1928, até sua ida para Paris em 1937, integrou-se no início dos movimentos modernistas, foi amigo de artistas, escritores e intelectuais, participou do Movimento Antropofágico lançado pelo Manifesto de Oswald de Andrade (1890-1954), expôs em Nova York e fez parte do Salão Revolucionário de 1931 – um marco no modernismo brasileiro, organizado por Lúcio Costa (1902-1998). Retira-se para Recife, onde monta ateliê e continua a trabalhar intensamente, e segue participando da vida intelectual com seu grande amigo Gilberto Freyre (1900-1987). Em 1937, vai para Paris, onde o aguardam o pintor Di Cavalcanti (1897-1976), sua mulher Noêmia Mourão (1912-1992) e o escritor Paulo Prado (1869-1943).

 A longa experiência do pintor na Europa foi das mais intensas, tanto no plano cultural, convivendo com artistas modernos exponenciais do século XX e participando de movimentos e exposições notáveis, quanto no plano das aventuras de um homem corajoso e amante da liberdade, durante os anos sombrios da Segunda Guerra Mundial. A partir daí, sua arte tem mantido as encantadoras espontaneidade e originalidade, com uma assumida poética visual que, em determinado momento, enfrentou os desafios do abstracionismo, e deles extraiu a ambição de horizontes cada vez mais amplos.

Cícero Dias (1907-2003), pintor pernambucano. O amálgama desses dois termos parece esboçar uma metodologia: analisar a pintura de Cícero Dias sob terreno visual limitado, analisar a filiação ou mesmo a não filiação entre sua pintura e sua região natal, Pernambuco. Mas nessa dialética artista/região se insinua outra: o homem/artista. De igual modo, leva a supor a existência de uma relação entre esse homem e seu país via a biografia, o enraizamento, o regionalismo, sem que seja por isso um dikat, um discurso fechado. Bem ao contrário. A escolha inicial dessa moldura de pertença aponta para a prática confessa da atividade pictórica em Dias ter um halo proustiano inegável. Isso significa ter uma manifestação energética que supera a conceitualização e abriga a sobrenaturalidade, transformando as experiências do cotidiano em algo revelador da plataforma genética, a qual transversaliza as estações do processo poético.

O artista pernambucano atravessou o século e, em seu itinerário, há sua dupla ligação com o Modernismo Brasileiro e a Escola de Paris. Assim convergente, é surpreendente como sua obra se articula na fluidez e nas oscilações de um processo de criação variado e múltiplo. Elo a elo, da figuração imaginativa à abstração construída, do devaneio da memória ao puro rigor da invenção, seu campo imagético é construído com a linguagem singular que traz a marca do projeto ideológico do artista: “Partir do regional ao universal”. Estamos, pois, diante de uma questão que, por ser exposta de maneira recorrente pelo pintor, induz a não limitar a obra a este ou àquele período,

cabendo transpô-los e alcançar a imagem sem retirá-la do tecido expressivo ao qual está ligada por infinitos elos vitais. Diante dessa órbita artística, como se dissolve o conflito entre experimentação formale manifestação liberatória de afirmação autobiográfica? Como a obra mostra tanto sua inatualidade quanto seu aporte em relação à pintura em geral?

Não cabe dúvida de que Dias se aproxima da “regionalidade” de modo etimológico, como decantação de mundo a partir de meios plásticos. Pode-se dizer que ele desconfia do primado da regionalidade, ou melhor, pesquisa sua inteireza, mas pela via que confere um papel ativo aos próprios elementos constitutivos da linguagem artística e constrói um espaço dotado de leis próprias. Como uma constelação, aqui sumária pelas próprias circunstâncias, é possível enunciar alguns pontos cardinais que transversalizam sua obra. O primeiro baseia-se naquele mundo de antigamente, dos senhores de engenho nordestinos, no qual Cícero Dias vive sua infância. A casa-grande do engenho de Jundiá, onde o real se misturava ao fantástico e evocava digressões, sob um realismo mágico, permitiu à obra alimentar-se de rico repertório regional, de frescor primitivo, entretanto poroso à ressonância universal. Retenhamos a importância dada pelo pintor a esse reservatório de mitos, de obsessões, de fantasmas e de visões, à sua rica iconografia pessoal, que tornava possível uma verdadeira trama de aliança entre a cultura patriarcal dos senhores do engenho e a estimulante emulação filtrada no amálgama da tradição afro-brasileira e da visualidade decorativa popular do Nordeste.

Angela Grando

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