Gloria Pecego e Clara Van de Water

Apresentação

Até hoje a galeria Multiarte havia se limitado às exposições de obras bidimensionais, pinturas e desenhos. Mas chegou enfim o momento de desafiar a tradicional ausência de apoio à escultura em nosso país, e com especial contentamento oferecemos ao público de Fortaleza esta mostra que apresenta os trabalhos de duas jovens e experientes artistas residentes no exterior Gloria é brasileira e Clara é holandesa. A amizade entre as escultoras e a sólida formação técnica e profissional que possuem são certamente responsáveis pelo clima de equilíbrio e identidade que caracteriza a presente exposição.

Entretanto, a individualidade de cada uma das artistas, inclusive implícita em suas diferentes origens culturais, permanece nítidamente assinalada nas obras de cada uma delas.

E uma excelente oportunidade para que se possa apreciar questões e soluções típicas do universo da tridimensionalidade dos volumes e dos espaços negativos, acompanhando a obra recente destas escultoras que pela primeira vez se apresentam no Ceará.

 

GLORIA PECEGO

 

Todos os processos são sagrados se interiormente necessários
W.Kandinsky, Du spirituel dans l’art

 

Diante das esculturas de Gloria Pessego as sólidas massas dos volumes que as constituem desaparecem. O bronze perde a materialidade, nos convidando à plasticidade dos objetos em si; a escutar os ilêncio dos volumes que parecem brotar no espaço em contorções de suave e harmonia. Em cada uma de suas esculturas podemos observar como a superfície se movimenta discreta, em calma evoluçāo: as formas se insinuam sensual e sedutoramente, como a melodia de um adágio. Protuberâncias, arestas e reentrâncias individualizam, apesar da multiplicidade, a obra desta original artista. Há uma grande unidade no conjunto, embora cada uma das peças guarde a sua particularidade.

Gloria Pecego sabe tirar do material que trabalha – o barro – a expressão

desejada. O domínio da técnica, favorecido pelo conhecimento do ofício lhe permite alcançar resultados extremamente originais, em formas tão simples. A matéria transfigurada, ganha expressividade no brilho fosco da pátina e do metal polido. Se desmaterializa, deixando o bronze em estado de fantasia; de forma desejada.

A mesma pátina que vela a matéria, revela a forma em sua plenitude. Soberbas na imobilidade, as esculturas de Gloria Pecego interferem no espaço adjacente, gerando tensão contida em cada movimento. Assim instigam, atraem o espectador; prendem o olhar. A tensão contida em cada uma das formas, parte de um detalhe, irradia e toma toda a superfície do volume. Há algo superior nestes objetos; algo inconcluso que a matéria não é suficiente para satisfazer ao espectador. As palavras do crítico também. Estas esculturas aspiram a condição abstrata da música.

Gloria Pecego reside em Roterdā e há treze anos está na Europa; mas faz questão de manter um ateliê no Rio de Janeiro. A sua formação começou no Rio, onde estudou desenho, fotografia, escultura e se licenciou em artes plásticas; continuou na Austria, freqüentando a Sommerakademiee em Salzburgo. Por algum tempo cursou a Akademie voor Beeldende Kunsten de Roterdã, Holanda; e pelo longo período de oito anos a École Supérieure des Beaux Artsde Paris, concluindo o seu aprendizado formal. Mas a formação de um artista não se limita às escolas. A curiosidade de Gloria Pecego levou-a às seculares e célebres pedreiras de Carrara, na ltália, aproximou-a dos bons fundidores europeus e brasileiros. Tudo que está associado ao seu ofício é de seu interesse.

O currículo de Gloria Pecego nos dá provas de uma intensa atividade intelectual, pontilhado que está de exposições individuais, participação em salões de artes plásticas e mostras coletivas. Conquistou o seu lugar; se impôs. Na sua trajetória como escultora, Gloria talhou amadeira, esculpiu a pedra, fundiu em gesso, cimento e poliéster. Pesquisou os materiais na incansável busca da expressão associada à forma. A opção pelo bronze é o resultado desta procura.

O desenho é o ponto de partida. A gênese da obra se dá no plano. Na superfície do papel, Gloria Pecego avalia os contornos, esboça a estilização dos volumes, estuda as formas, representa assombras, deixando transbordar suas emoções. Pensa o barro e a sua plasticidade, como o compositor pensa o som dos instrumentos ao preparar a partitura. As formas surgem ganhando expressão: máscaras, animais, o sensual e sedutor modelado de um corpo feminino, se fundem à costilha de um alaúde, cravelhas se juntam às formas num sincretismo que não se dá ao acaso; ele é a aspiração de uma sonata desiderata; do som interdito.

A artista é atraída pela sonoridade e a plasticidade dos instrumentos musicais que, quando em repouso, silenciosos, guardamos sons que os identificam. Gloria Pecego se propõe a dar visualidade ao som; associá-lo ao volume. Seu propósito é criar uma atitude musical no espectador que contempla os seus trabalhos: a do músico capaz de ouvir interiormente uma partitura ao lê-la. Esta escuta interior, silenciosa portanto, estimula a reflexão em torno da forma e da expressão estética.

Mas não é a forma a idéia em si. A forma estética começa a sua existência quando a artista monta a estrutura; a armação construída de ferros soldados, arames e madeiras, que sustentará o peso inerte do barro modelado é decisiva para se alcançar o resultado desejado. Mas a escultura ganha expressão nas diversas fases por que passa durante a confecção do objeto. E fundamental que a artista acompanhe todas as fases, pois é na metamorfose que se alcança sua plenitude.

Fundido, o bronze recebe a pátina. Não há acaso nas sucessivas operações. A cor usada para patinar a escultura também está associada à busca da artista para alcançar o essencial.

Sobre o pedestal, a forma reserva todo a sua tensão para o espectador atento.

Comove.

Elmer C. Corrêa Barbosa

CLARA VAN DE WATER

 

E preciso contentar-se em descobrir, mas guardar-se de explicar
George Braque, Le Jour et la Nuit

 

Primeiro a sua formação: Clara van de Water freqüentou a Rijksakademie voor Beeldend Kunsten de Roterdā, com Grègoire; estudou na Internationale Sommerakademie em Salzburgo e na Rijksakademie de Amsterdā. A exemplo de tantos outros artistas holandeses, buscou formar-se, adquirir domínio do ofício e conhecer a teoria. Depois sucederam-se as exposições individuais e coletivas em museus e galerias da Europa, tendo mostrado seu trabalho também no Brasil: em 1981 em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro. Em todos os lugares por onde as suas esculturas foram apresentadas, a crítica as recebeu com entusiasmo. O diretor do Stedelijk SchiedamHans Paalman, referiu-se aos trabalhos de Clara como forma “límpida e direta.

Despida de mistérios, confronta a realidade de animais e seres humanos”. No Brasil, o crítico de arte Geraldo Édson de Andrade identificou, ao recepcionar a artista na exposição que fez no Rio de Janeiro (Galeria BANERJ), “evidente expressionismo em sua obra”, que viu como uma proposta para grandes espaços.

Impressiona a força expressiva da obra desta jovem artista; também a precisão técnica que as peças alcançam. Uma revelação de qualidade que se pode encontrar em qualquer uma delas.

Modelando diretamente a peça que servirá de molde à forma que irá para a fundição do bronze, Clara demonstra pleno domínio da técnica e do conhecimento do processo metalúrgico que resultará no objeto de arte acabado. Não há acaso, mas árduo trabalho. Clara van de Water não esboça em desenho suas peças. Trabalha direta modelando a cera, logo depois que apronta a estrutura metálica que sustentará a escultura. Seu trabalho surge progressivamente, como que espelhando a emoção contida pela artista. Clara nunca trabalha uma única peça, mas duas ou três simultâneamente: é o momento que a orienta, conta-nos sua amiga a artista Gloria Pecego, igualmente escultora.

O observador atento, ao ler cada uma de suas esculturas, constatará que o ponto de partida é a matéria-prima: a cera que ficará perdida depois da forma pronta para a fundição. A cera usada para a modelagem, Clara van de Water a prepara em seu ateliê: breu, parafina e cera de abelha devem ter uma certa consistência, para garantir o resultado desejado. A pasta consistente que se submete dócil à pressão dos dedos da artista e da expressão é, muitas vezes, cortada em lâminas que, emplacas irregulares, estruturam a obra. A forma que constrói por ímpeto, pertence ao ato de transcendência como um segundo momento; este momento é a gestalt. Para alcançar o resultado desejado é preciso, durante todo o processo de execução, ao manipular a matéria orgânica, não deixar escapar o resultado final esperado: a obra depois de fundida. Matéria e forma; substância e idéia não são pensadas em separado. Aparecem no objeto quando acabado, como aspecto de um único ato de criação; transcendente como resultado. As esculturas de Clara van de Water, independentemente do tamanho, sugerem ser estudos para monumentos colossais. Esta idéia nos é passada, precisamente, pela correta integração da matéria que constrói o objeto e lhe dá forma.

Animais, figuras humanas e formas abstratas que compõem o conjunto que a artista expõe: os espectadores podem perceber, sem esforço, que todas fazem parte da natureza. A forma exterior, revestida pela pátina obtida com banhos de ácido, exibe a textura do bronze; a forma externa existe em si, sem qualquer relação com algo interno. A artista parece evitar que a forma alcançada traduza algo mais íntimo e espiritual que o objeto em si. Suprimir os detalhes; negar a anatomia mas perenizar os movimentos, as estruturas monumentais, este é o resultado de seu trabalho. O volume-síntese de matéria e sentimento – é oque prevalece.

Elmer C. Corrêa Barbosa

Espaço expositivo